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O título explica.

segunda-feira, abril 26, 2004

Uma semana divertida, ou, Alguém quer biscoito de queijo? 

[Texto de 16 de setembro de 2000]

Eu devia ter sabido logo de cara. Cheguei a Goiânia vindo de São Paulo depois de um mês de ausência e, entre um ônibus e outro, preparei o meu "alô" mais meloso e liguei prà Ângela. "Ah, oi", ela respondeu. E foi logo tratando de emendar: "Olha, eu estive pensando...".

Mais uma. Quer dizer, menos uma. É a vida, umas vão, outras vêm. Para provar que isso é verdade, quando entrei em casa em Pirenópolis encontrei passado por debaixo da porta um recado da Flávia "Pitéu do Cerrado" Curado, que tinha sabido pela Marly que tinha sabido pela Guta que tinha sabido pela Renata que tinha sabido pelo Reinaldo que eu estava chegando e queria me convidar prum almoço na casa dela. Foi o tempo de deixar a mala no quarto, tomar um banho, tirar a última camisa limpa do armário (aquela roxa que eu apareço vestindo em tudo que é foto) e correr pros braços da Flávia, a Ângela vai ver só, hoje à noite eu nem lembro mais que ela existe. No caminho, caiu um botão da camisa, bem o do meio que ajuda a disfarçar a barriga. Mas tudo bem, quando eu cheguei, a casa da Flavia estava abarrotada e o pitéu já tinha sido servido pro Luís Marcos, um (ainda por cima!) tradutor de Brasília, de modo que barriga ou não não ia fazer diferença nenhuma. No meio do regabofe, senti uma coisa esquisita na boca, remexi e quase desmaiei: meu incisivo lateral superior direito tinha quebrado quase na base. Assim, sem mais nem menos, paf!, banguela. Levantei, saí de fininho, comprei uma garrafa de cachaça e fui afogar as mágoas sozinho em casa. Basta eu ir a Brasília e tapar o buraco no consultório da Jussara e ninguém me vê assim.

Na manhã seguinte, o que eu achei que era ressaca foi ficando cada vez mais esquisito, tão esquisito que eu já estava começando a jurar que nunca mais bebia sozinho quando cheguei na Mariângela para a costumeira bóia grátis de domingo e, em vez de me dar comida, ela me enfiou na cama e me enfiou um termômetro debaixo do braço, claro que depois de rir do buraco na minha boca e chamar até a cozinheira pra ver. Quarenta de febre. O Lulão veio me ver, apertou aqui, hmmm, apalpou ali, haaa, auscultou, perguntou, me levou pro raioxis e condenou: bronquecstasia. Ou você pára de fumar hoje, ou...

Menos um. Só me resta a pinga, agora. E adeus próteses jussarianas, viagem só daqui a uma semana, pelo menos. É o que dá eu me meter com médicos que não fumam. E o pior é que a notícia se espalhou, e meia cidade veio me visitar pra ver se eu estava precisando de alguma coisa, nunca vi tanto biscoito de queijo e tanta falta de imaginação pra dar presente pra doente. E claro, a primeira coisa que todos diziam era, "nossa, o que aconteceu com o seu dente?" Antes da hora do almoço da segunda-feira eles já nem se davam ao trabalho de vir me ver, telefonavam, até de Goiânia ligaram. Pra saber se era verdade que eu tinha ficado banguela. Também ligaram de São Paulo, mas foi pra avisar que o trabalho de 27 mil palavras a 16 centavos por palavra e pagamento contra entrega tinha sido cancelado.

Tudo bem, pensou a Poliana que há em mim, melhor cancelarem antes de eu não conseguir entregar. É melhor mesmo eu ficar de molho, parece que eles adivinharam. Seja como for, na sexta me pagam o trabalho que entreguei no dia 15 do mês passado prum pessoal de Curitiba, uma merrequinha de 580 reais, mas com isso dá até para fazer extravagâncias aqui em Pirenópolis até sair o trabalho do Rio. Está tudo bem, nada de pânico.

Na terça de manhã cortaram a minha água, antes de eu tomar banho. A minha sorte é que estava por aqui o meu sobrinho xavante mestiço de huno, suspenso por ter dado um tapa na mão da professora de religião porque ele estava saindo da sala antes de começar a aula e ela resolveu arrastá-lo na marra de volta à carteira, some habits die hard. Escrevi e despachei por ele uma carta indignada pro Coxó da Saneago explicando que estava doente e não podia ficar sem água e que não tinha pago a conta porque estava viajando, e lembrando que o corte de serviços essenciais é proibido sob qualquer circunstância e que ia pagar assim que ele mandasse religar a água. Ele mandou dizer pelo Diogo que ia religar e cumpriu a promessa. No dia seguinte.

Eu também cumpri a minha promessa. Também com um dia de atraso. Na quarta, portanto, com a água de volta, fui pro banheiro, tirei a roupa, abri a torneira, testei a temperatura da água e ia entrar no banho quando o chuveiro desligou. Nem perdi tempo pensando. Me enrolei na toalha, corri prà porta, abri-a com um chute metafórico pra dentro, apontei o dedo e gritei: "se você não parar já com isso eu chamo a polícia!". O Djair da Celg, aquele que ia me alugar o telefone, lembram?, deixou cair a chave de fenda e quis argumentar, "mas a conta não foi paga...". Repeti a carta da Saneago ao vivo em em cores pra ele, parado na calçada só de toalha, e o coitado ficou tão atrapalhado que religou tudo, recolheu as ferramentas e foi embora. E eu voltei pro banho triunfante, sob o olhar boquiaberto dos passantes. "O banguela é brabo, sô!". Depois fui pagar a conta de luz. E claro que, depois disso, a febre...

Na quinta de manhã acabei de ler os livros que tinha comprado em São Paulo para o mês todo. Depois do almoço, ouvi uma algazarra no quintal, fui investigar e descobri que um bando de pelo menos vinte macacos-prego estava sistematicamente dando cabo das mangas para as quais eu tinha tantos planos. E os sacaninhas deixaram de lado a manga espada, muito mais madura, e foram direto para os dois pés de manga rosa. Não sobrou uma. Depois, a Jussara telefonou pra avisar que estava indo pra Salvador e só volta em outubro. Bom, lá se vão duzentos reais dos 580 que eu recebo amanhã, faço a prótese com o Netinho aqui mesmo em Piri. Menos cem que devo à Mariângela, se eu me apertar um pouquinho, comer os Cheetos e a gelatina que sobraram da passagem das crianças por aqui em julho e guardar os biscoitos de queijo no congelador, dá pra agüentar até o fim do mês. Lá pràs três, telefonema da Telegoiás: "Sr. Tomás? O nosso departamento técnico concluiu que a sua conexão só pode ser instalada em meados de novembro". Eles tinham prometido pra fins de setembro.

No fim da tarde, a Sandra e a Ken chegaram pra fazer companhia pro nenê que tá dodói, trazendo a TV da Sandra e o vídeo da Ken e três fitas alugadas. Ueba. Peguei a carteira, tirei os últimos trinta reais e despachei a Sandra pro Godinho pra comprar vinho e queijo e torradinhas enquanto ficava fazendo olhinhos prà Ken, de repente já quase sem febre, que milagre. A Sandra chegou com uma garrafa de Casillero del Diablo, quatro pacotes de torradinhas, um gorgonzola do Godinho, um emental e uma ricota do Stefan que ela passou para pegar no restaurante dela, fizemos pipoca, fizemos patê de ricota com alho, oba, vai cair um toró jajá, oba, a Ken está definitivamente mal intencionada, oba, que mané Ângela que nada, quem precisa dela, xiii, logo agora você foi se empanturrar de alho?, além de banguela, fedorento?

Instalamo-nos no sofá, claro que eu no meio, ligamos a televisão, abrimos o vinho, brindamos, disparamos a primeira fita ("Janela Indiscreta", já vi umas oito vezes, mas, com aquela loira do lado de lá e estas duas morenas nos flancos, quem liga?), assistimos aos trailers todos e BAAAAAMMM!, um trovão, começou o toró.

E acabou a luz. Quando voltou, três horas depois, a Ken estava profundamente adormecida e eu já tinha confessado à Sandra que estava mesmo era com saudades da Ângela. As duas foram embora e eu assisti Janela Indiscreta pela nona vez, sozinho. Sexta de manhã, acordei de ressaca, já não se pode mais confiar nem no Casillero, até isso o Pinochet conseguiu estragar, dois copinhos e vejam só. Mas sem febre, todo lépido. Telefonei prà Mariângela e pro Reinaldo, convidei os dois para ir tomar café da manhã comigo na Dona Sebastiana por conta dos 580, enchemos o rabo de suco de mexerica e pastel de palmito e pão de queijo e café com leite, penduramos a conta alegremente e fomos pro banco.

Nada de dinheiro. Telefonemas frenéticos para Curitiba. Pagamento? Nããão, Sr. Tomás, não temos nada aqui, quando foi que o senhor entregou a tradução? Dia 15 de agosto? Aaah, então é isso, o senhor se confundiu: são trinta dias úteis...

Desliguei com toda a calma. Dei um murro na árvore ao lado do orelhão. O fecho da pulseira do relógio quebrou. O relógio voou longe, o cristal trincou. Voltei pra casa, com cuidado para não passar em frente à dona Sebastiana, tirei o colete, joguei no sofá, fui ao banheiro, fui à cozinha, peguei o resto dos queijos e as torradas, preparei um suco de laranja, voltei prà sala, liguei a TV e o vídeo, fui arrumando os bebes e comes na mesinha enquanto ia arrancando as botas pisando com uma no calcanhar da outra; uma saiu sem problemas, a outra foi mais teimosa e puxei com mais força: o pé subiu, com bota e tudo, mas a sola ficou no chão. Fiquei ali parado, olhando pro pé descalço completamente e pro outro dentro do jacaré pra atrás que tinha virado a minha bota favorita, pensando que precisava cortar as unhas. Liguei o dane-se no máximo e me joguei no sofá. Oops, o colete. Levantei a bunda, tirei o colete de lá debaixo, liguei o vídeo com o controle remoto. Onde foi que eu deixei os óculos? Voltei ao banheiro, à cozinha, e nada. Onde é que eu fui deixar a porra dos óculos, estava com eles quando falei com o Beto, aqui em frente à porta, só tirei pra limpar na barra da camiseta e guardei...

...no bolso do colete.



São cinco e vinte da manhã de sábado e estou escrevendo na cama, onde estou desde as onze da noite de ontem, quando cheguei da casa da Mariângela e reparei que tinha deixado lá as 58 páginas do fax com o original da tradução que eu tinha planejado rever durante a noite. Juro que até a meia-noite, quando a semana acaba, só levanto desta cama para ir fumar escondido de mim mesmo no banheiro.

Coisas pra se fazer em Pirenópolis 

[Texto de 1.o de agosto de 2000]


Semana retrasada, dona Maria Bernardo, esposa amantíssima do Joel pedreiro do Bonfim, estava arrastando os pés a todo vapor num forró da Festa da Capela, lá em Capela do Rio do Peixe, quando, no melhor da farra, teve um derrame fulminante e morreu antes de cair no chão.

O corpo foi levado lá prà Funerária Ressurreição ("nossos presuntos só faltam falar", devia ser o lema deles), lavado, tratado, arrumado e despachado para a casa da família enlutada. Dizem as más línguas que, quando chegou, dona Maria era a única que não estava trançando as pernas.

Muito bem. Choradeira, parentes chegando de Goiás inteiro, cachaça rolando solta, noite avançando e, lá pràs tantas, alguém comenta que pena que a Maria não gostava de ser fotografada, bem que agora um retrato dela fazia falta. Não foi preciso mais. Outro alguém foi lá dentro buscar os óculos da defunta, a filha reforçou o batom na boca da mamãe, quatro parentes matulões agarraram o caixão e levaram para o quintal seguidos da família inteira. Todos fizeram caras de felizes, puseram o caixão em pé apoiado na parede da cozinha e o Bodinho fez o instantâneo, com a dona Maria feliz da vida no meio da parentalha toda, de óculos escuros às três da madrugada.

Ócio planaltino 

[Texto de 15 de junho de 2000]

Há os dias como hoje, em que não se tem rigorosamente nada para fazer, desde
a hora em que se abre o olho até a que se fecha. Logo de manhã, já sabendo
que ia ser um dia desses, fiquei na cama até começar a ficar anquilosado,
lendo um livro sobre aceleradores de partículas e tentando acompanhar os
cálculos -- logo eu, que mal sei ler números em notação científica. Quando
comecei a ficar com cãibras, fui para a varanda dos fundos, trouxe o
computador, abri o Excel e a calculadora científica, fiz contas, anotei tudo
e no fim continuei sem entender nada. Já eram sete e meia e a serra Matutina
já estava todinha ensolarada, a irmã do Tilapa, a prendada, veio trazer pão
e biscoitos de queijo acabados de fazer, passei um café e fui me sentar no
banco de pedra da calçada esperando passar algum conhecido com um cigarro.

Passou foi o Walter, o que era da Emater de Goiânia e que fez o plano todo
da minha plantação de guariroba lá na Várzea dos Lobos. Entrou, sentou pra
tomar café e começou a contar a história do gerente dele que fugiu com a
filha menor do Anísio irmão do seu Tamiro ali da Pratinha e "homem de
confiança" do Olympio Jaime. Já mandou trazer outro gerente do Piauí, porque
esse, diz ele, "n'demor'um nadica aparece boianno no rio das Arma c'as parte
fartanno".

Fui com ele buscar tomate na fazenda do Grilo lá perto de Corumbá. No
caminho, paramos pra comprar um garrafão de cachaça no Basto e pra comer uma
quenga na zona -- o bar do Jatobá, que de noite tem uma clientela
seletíssima formada por todos os fazendeiros de Pirenópolis e todas as
filhas dos fazendeiros de Corumbá (e o puteiro de Corumbá é ao contrário,
dizem), de manhã serve um caldo grosso de milho verde com frango que bem
feito é de arrancar lágrimas dos olhos do tanto que é bom e que sabe-se lá
por que cargas d'água é chamado de quenga. Lá ficamos sabendo de fonte
segura que o Stefan, aquele suíço finésimo que a Sandra jura que é peão,
chegou no Jatobá, encheu o rabo de cachaça, puxou briga logo com o Genival
da Bonsucesso, que anda calmo desde que o filho mais velho morreu junto com
a mulher do senhor presidente da câmara num acidente de automóvel voltando
bêbado da festa de Lagolândia -- e a digníssima senhora foi encontrada nas
ferragens vestindo apenas um colar que o marido trouxe pra ela do Rio --
enfim, que anda calmo mas nem por isso é obrigado a ouvir desaforo de gringo
bebum, levou uma sova de correia e foi dormir na cadeia. Na de Jaranápolis,
lá do outro lado do município a quase cem quilômetros daqui em estrada de
chão, para, segundo o delegado, ter tempo de esfriar a cabeça antes de
chegar em casa quando acordar. E, segundo o Jacinto do Cartório que estava
lá comendo uma quenga também, "pra ficá mais perto da fazenna q'da
cas'd'dona Sandra e n'armá mais encrenca p'r aqui".

Pouco antes da entrada da fazenda do Grilo, encontramos com o Madueño vindo
de Corumbá. Como a gente sabia que ele tinha acabado de conversar com o
prefeito porque já tinham dito pra nós no Jatobá que ele tinha passado por
lá logo cedinho pra ir atrás do homem na outra prefeitura -- o prefeito de
Pirenópolis largou da mulher e foi morar com a dona do cartório de Corumbá e
agora despacha os assuntos da prefeitura de lá mesmo, do cartório, em
Corumbá: se você tem um assunto com o prefeito, pega o seu carro se tiver um
ou o ônibus se não e vai até lá --, paramos pra conversar mais um pouco e
saber das obras da ponte do Carmo, que está interditada há duas semanas (diz
o tio da Dora que por culpa dela) e até agora necas. E parece que até
outubro a restauração não sai. O prefeito é o mesmo que da outra vez que
morei aqui, o Luiz Armando, que fechou as duas pistas da única estrada
asfaltada que saía da cidade, forçando todo o mundo a passar por dentro da
fazenda do seu Emilinho. Quando eu perguntei porque ele não fechava uma
pista de cada vez, ele respondeu: "Muito esperto. E quem ia notar que eu
estava fazendo a obra?". Até outubro a Mariângela, que tem restaurante do
outro lado da ponte, vai à falência. O Madueño aproveitou a parada e o
desvio para ir conosco até uma parte do caminho, comprar polvilho doce da
dona Engrácia, na fazenda do Zé Reis. E nós fomos carregar tomate. Trinta e
sete caixas e três cafés depois, voltamos a Pirenópolis, direto para a
padaria do Apolônio comer a famosa dupla um: bauru e suco de laranja, um
real, mas só de segunda a sexta. Fim-de-semana, com a cidade cheia de
turista, o preço dobra. Mais um cafezinho no Boim, onde ficamos sabendo pela
Rádio Orelha que o suíço tinha sido solto em Jaranápolis e que tinha ido
direitinho prà casa dele, na fazenda dela. Assim, respiramos todos
aliviados, ficam estabelecidos os territórios: o peão na roça, a dama na
cidade. Aproveitei pra passar no cartório pra ver se tinha chegado a segunda
via da escritura da minha terra na Várzea dos Lobos e encontrei o Zé Reis,
chegando de Brasília, esbaforido, contando que a filha do Sérgio Amaral, meu
ex-vizinho, tinha sido presa com sabe-se lá quantas centenas de doses de
ecstasy, e que o Sérgio tinha vindo de Londres pra acompanhar o caso e
estava em Pirenópolis pra ficar longe da imprensa e vamos jantar na casa
dele, hoje à noite. Oba, boca livre no Sérgio, vocês precisavam ver a adega
dele. O Zé Reis anda me cantando pr'eu entrar prà chapa dele na eleição da
nova diretoria da SOAP, da qual eu fui o primeiro secretário-geral em 1993,
quando ela foi fundada. A SOAP anda importante, conseguiu as verbas para a
restauração da matriz, do Theatro Pyrenópolis, do cine Pyreneus e agora da
ponte do Carmo. Eu disse que só entro se o Evandro Ayer cair fora, de
preferência com censura pública pelo rolo do dinheiro da Funatura pro Parque
Natural dos Pireneus, e o Zé Reis, que não gosta do Evandrão mas gosta ainda
menos de briga, desconversou.

Do cartório fui prà farmácia, me pesar. Oitenta e dois quilos e quatrocentos
gramas, oba! Cheguei aqui com oitenta e nove e seiscentos. Estava lá sentado
o velhinho húngaro um-sete-um da "bioterapia" dando conselhos sobre como
emagrecer e chegar aos oitenta e oito anos como ele, provocando orgasmos
múltiplos nas mulheres que fazem fila pra dar pra ele, claro que lá nos
cafundós de Sobradinho onde ele mora, porque aqui só vejo o velho na
farmácia jogando conversa fora e no restaurante natureba da rua do Carmo
reclamando dos preços e da aposentadoria. A mulher do Pinhé da farmácia
ouviu a conversa e gritou lá do fundo: "Mas, seu Magiar, o seu trem ainda
sobe?", e seu Magiar deu risada e respondeu: "Nem enfiando uma mangueira no
rabo e soprando forte -- meu negócio é língua, mia fia!". Dali fui ouvir o
noticiário em francês da Rádio Gaza no ondas-curtas do Omar palestino (a
família dele anda todinha a caráter e ele anda com o tapetinho de oração pra
cima e pra baixo na cidade, mas, isto sendo parte do Brasil e ele estando
aqui, já contribui generosamente prà Festa do Divino e acha bão ir prum
Pouso de Folia fazer farra), tomei um chazinho de menta com ele e com o
Suleiman irmão dele, rimos mais um pouquinho da história do suíço, marcamos
de ir comer quibe e beber arak (só eu e o Omar: o Suleiman inda não bebe
álcool) no bar do Ricardo de Anápolis amanhã depois do jogo do Palmeiras. O
Suleiman me arrastou pra tomar café com pão de queijo na dona Sebastiana, e
quando chegamos o Reinaldo estava saindo pra ir à minha casa falar do
projeto de programação visual das lavras da Vagafogo: declinei participar,
não quero papo com o Evandrão.

Fomos prà minha casa, o Reinaldo e eu, que ele precisava falar comigo em
particular sobre a Mariângela. Rolo, como sempre. Quando chegamos, a irmã do
Tilapa tinha acabado de deixar o meu almoço: arroz, feijão, costelinha de
porco com muita cebola, cenoura refogada, batata-doce frita crocante, salada
de tomate, bananada com queijo de cabra: todo dia muda, setenta e cinco
reais por mês, e sobra prà janta ou dá pra convidar alguém. Durante o almoço
apareceu o Arnaldo Lobato, o Índio, procurando o Reinaldo. A cidade inteira
sabe que se ele não estiver em casa ou na Mari, está aqui (me peçam pra
contar um dia a história de dona Flor e seus dois ex-maridos).

Já passa do meio-dia. Mais um cafezinho, um cigarrinho e estou pronto para a
tarde de ócio. Ô vida estressante!

Figuras I 

[Texto de 14 de junho de 2000]

O Biti é mecânico especializado. Só conserta Fusca e Brasília. Como mais de metade da frota de automóveis de Pirenópolis é composta de Fuscas e Brasílias, a clientela é abundante e constante. Como mais da metade dos donos de Fusca e Brasília não tem um tostão furado, o Biti é também um dos maiores credores da cidade. A gente passa ali pela rua Nova, ao lado da porta dos fundos da casa da Christiane, e o Biti está sentado na frente de um monte de motores desmontados, na calçada, na oficina, pendurados no umbuzeiro, do outro lado da rua na sombra da galeria do Elim Dutra, que é também diretor da Agência Brasileira de Cooperação e embaixador nomeado em Estocolmo. Deixar um Fusca pra consertar no Biti é ter a certeza de ele voltar com as peças todas trocadas, porque ele nunca sabe qual peça é de qual motor. Mas, em compensação, pergunta pra ele em que ano o Roberto Carlos gravou Gato Preto: o Biti tem todos os discos do Roberto Carlos, e passa o dia ouvindo. Só ouve Roberto Carlos. Diz que um dia a mulher dele, logo depois do casamento, comprou um disco do Jerry Adriani e trouxe pra casa, toda contente. Biti disse pra ela: "se você for me trair, faz longe de casa e não me deixa saber. Mas trazer macho pra dentro da minha casa eu não admito". E mandou ela devolver o disco.

O Biti também raramente conversa com alguém diretamente. O negócio dele é dar pitaco em conversa alheia. Das sete da manhã, quando ele abre o barraco, até meio-dia, quando entra pra almoçar, ele fica ali, escarafunchando os motores com um pito apagado no canto da boca, dando um palpite aqui, fazendo um trocadilho ali, gritando uma safadeza qualquer, em geral ligada às práticas sexuais da vítima, para quem passa na rua. Mas, pra ouvir ele falar sem parar, é só perguntar do tempo que ele era locutor da "rádio" Pirenópolis, um alto-falante no telhado da prefeitura, nos anos cinqüenta. Nem motor fundido faz ele calar a boca.

Meio-dia, é o famoso almoço do Biti. Tá sem comida em casa, com preguiça de cozinhar, com vontade de variar? É só conseguir engatar uma conversa na porta do Biti um pouco antes do meio-dia. Quando a Dete mulher dele chama prà mesa, quem estiver por perto é intimado a entrar e comer, e ai de quem disser não. A Dete é uma das cozinheiras mais famosas da cidade, e o empadão dela é disputado a tapa durante a festa do Morro, no plenilúnio de julho. Depois do almoço, o Biti deita na rede pra fumar o pito que estava no canto da boca desde as sete, toma uma cachacinha pra animar e fala mal da vida alheia até a uma e meia. Depois, volta pros motores.

Re: ALELUIA!!!! 

[Texto de 20 de junho de 2000]

Olá, Gui,

voltei, mas continuo aqui. Quer dizer, não voltei, estou tentando sair. Ou
seja lá o que for.

Minhas voltas dependem do humor do vizinho que tem telefone, e do quanto ele
bebeu na noite anterior. O telefone que o Tilapa disse que ia me arrumar não
pode ser tirado do endereço onde está porque o assinante morreu e os
herdeiros não podem mexer em nada enquanto o inventário não acabar
(engraçado, quando a minha mãe morreu, o marido português dela pegou tudo o
que eles tinham, passou nos cobres e foi viver em Morro de São Paulo --
cadê o tal do inventário? Porque é que ele pode e o meu telefone não?). O
Djair pagou as prestações atrasadas do telefone dele e disse que, quando a
linha fosse religada, ele mandava transferir prà minha casa. Isso foi há
duas semanas e, até hoje, a Telegoiás não se lembrou de religar o telefone.
A mãe do Elísio das Pedras me aluga um telefone, se eu assinar um contrato
de um ano e pagar um salário mínimo por mês -- tô quase aceitando. Mas a
Telegoiás prometeu que vai instalar dois mil telefones na cidade até fins de
agosto, e o meu está nessa fila desde 1994, deve ser incluído no pacote.

Desde 1991 que não instalam uma única linha aqui.

Quem manda? Tanto lugar pra morar...

Mas ainda resta uma esperança. O Castelo passou aqui em casa e disse que vai
sair da casa dele e que se eu quiser ficar com ela é só dizer. A casa dele
não tem nenhuma jaboticabeira, mas tem mais mangueiras que a minha.
E-tem-te-le-fo-ne! Daqueles que fazem trintrim. O único problema é que fica
na rua Direita, a três casas da casa da Christiane, a morena linda do zóio
cor de mé que cometeu a imprudência de casar comigo quando morei aqui em
1993-94. E o Jãozico Lopes, um goianão chucro dimetrinoventa que é o atual
namorado da moça, já mandou avisar que se me vir rondando a rua Direita vai
servir o meu pinto fatiado misturado na ração da criação de filas dele. E
tendo em vista o número dos cães e o tamanho relativo das partes envolvidas,
acho que eles nem iam sentir a diferença na dieta, ó fim inglório!

E a Dora, mulher do Romeu padeiro da rua dos Pireneus, disse que vai tirar o
telefone que ela alugou pro tio que mora na rua do Carmo com a mulher e os
oito filhos mas tem amante e três filhos na rua Aurora e passar prà (com
acento grave, sissinhora Dona Clotilde) minha casa na rua da Prata porque o
Galeão -- o que é casado com a Cristina que é prima da Geni da pousada da
praça do coreto, ao lado da pizzaria do alemão casado com aquela paulista
doida devota de Maria, e sócia do Lionel, uma bicha velha francesa fazedora
de tiaras de noiva -- disse pra ela que o tio dela disse que ela devia ser
proibida de passar na ponte do Carmo porque cada nádega dela pesa mais que
duas carroças de areia do Gerardim Meiometro e a ponte anda meio capenga.

Anteontem, eu vinha subindo a rua Matutina e parei pra perguntar pro padre
Joel, aquele que ameaçou excomungar os donos de farmácia que vendessem
camisinha e mandou arrancar os bancos da praça pra ninguém namorar em frente
à matriz e foi processado pela prefeitura por destruição da propriedade
pública, como é que vai indo a vida na nova paróquia que arrumaram pra ele
em Parede dos Bernardos, um povoado aqui do município que fica a 74 km da
sede, e se por acaso ele não sabia de ninguém com um telefone pra alugar.
Ele começou a me contar a história de como tinha conseguido fechar o único
puteiro do povoado e de como os homens da região adoram ele. A história
estava boa, mas perdi mais da metade, porque vi passar por mim o Stefan
Gaehwiler, um peão suíço fazedor de queijo que mora em Corumbá (a de Goiás,
não a do Pantanal) e é casado com a Sandra, dona do café Alpino em frente ao
correio, indo justamente em direção ao estabelecimento da amada, e com a
cara que ele deve usar para coalhar o leite dos queijos dele. O padre Joel
notou a minha distração, acompanhou o meu olhar e parou de falar. "Iiih,
fodeu!", disse o defensor dos bons costumes do planalto central. "É hoje que
o corno estoura uma veia".

Dito e feito: o peão suíço que a Sandra achou chique só porque era suíço
apeou da D-20, bateu na porta, olhou pelo buraco da fechadura, olhou por
debaixo da porta e começou a subir pela janela porque ninguém abriu a porta;
quando conseguiu chegar ao parapeito, já tinha umas vinte pessoas, entre
elas eu e o padre, tentando segurar o rapaz, enquanto a Ken, catarinense
namorada do Alexandre homeopata que é casado com a Célia que namora o Kojak
da Casa do Agricultor da esquina do beco da dona Sebastiana, gritava a
plenos pulmões pra dentro do café da Sandra: "Sandra, o Stefan tá aqui". O
Marquinho, recém chegado de Taubaté e cacho da Sandra, saiu dos fundos do
café pelo quintal do Gábor, o húngaro da Meta Computação Gráfica que anda
comendo a filha da Joana do Das Flô (a mesma -- a filha, não a Joana, que
é crente -- que antes foi o pivô da separação entre o prefeito e a
primeira-dama, que pegou os dois fazendo arte no gabinete do juiz) enquanto
a mulher dele está viajando, subiu na moto do Venturoso que estava dando
bobeira por ali e se arrancou. Enquanto isso, a Sandra, com a cara mais
lavada do mundo, abriu a porta, olhou em volta, viu o suição mais vermelho
que nunca no meio daquele povo todo segurando ele, voltou a entrar, fechou a
porta e a janela e não deu mais as caras. O queijeiro lançou um olhar
assassino na direção geral da rota de fuga do Marquinho, um olhar suspirante
na direção precisa das portas fechadas, entrou na D-20 e voltou pra Corumbá.
O público voltou pro que estava fazendo antes do fuzuê resmungando que suíço
é manso demais e que diabo!, nem uns tirinhos pra animar a tarde, e o padre
Joel perguntou:

-- O Ditinho da Lotérica costuma ter telefones pra alugar, já falou com ele?

Já, já falei. Aliás, a Mariângela falou, porque o Ditinho não vai com a
minha cara. Convidei o padre pra tomar café na minha casa, a Ken veio
apanhar mexerica no meu quintal, o Beto da casa ao lado viu o movimento e se
convidou pro café também, o Tilapa apareceu com uns biscoitos de nata da
irmã dele (prendaaada, a moça!), o Roque veio com a Mercedes trazer um
de presente um tapete que ela tinha acabado de tecer e a gente passou o
resto da tarde rindo da cara do suíço e do topete da Sandra.

O grande assunto da cidade, é claro, é o que que o suíço vai fazer. A Sandra
dá de ombros: "A fazenda é minha, onde é que ele vai fazer queijo se se
meter a besta?"

E ninguém mais pensa em me arrumar telefone. Ô suicinho inconveniente!

*****************

Dia 29 tenho uma reunião em São Paulo e estou pensando em chegar uns dois
dias antes, e sair uns dois dias depois.

*****************

Tim, o João Elias te ligou?

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E por aqui fico. Mas volto.

Tomás
Vejamos como anda a vida no planalto central.

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